"Sorôco, sua mãe, sua filha" é um conto de Guimarães Rosa que tematiza a loucura e o comportamento das pessoas com relação a ela. A análise é feita nos três níveis, discursivo, narrativo e profundo, na qual, descobre-se um Autor preocupado em dissecar o louco que é a vida humana, como o normal é ser louco e como a vida só é possível em solidariedade.
A superfície do conto parece apontar para um quadrado semiótico onde se opõem normalidade e a normalidade; o discursivo desenha-se figuras que nos conduzem aos poucos a outro quadrado semiótico, onde o que pesa é a solidariedade/não-solidariedade versus a solidão (sozinhidão) /não-solidão, sempre com uma estrutura básica onde a questão passa a ser a vida/não-vida versus morte/não-morte. Esta oposição fundamental deste conto é constituída pelas duas categorias dos contrários LOUCURA X NORMALIDADE, sendo esta o termo eufórico e aquela, o disfórico. Num nível mais abstrato, loucura é reificação do humano, sua descaracterização, o que nos permite inferir o quadrado semiótico:
Aos termos contrários / louco X normal/ contrapõem-se os termos subcontrários, seus contraditórios / não-louco X não-normal/.
A loucura "reificada" corresponde, por sua vez, em nível de maior abstração, à morte; a normalidade, à vida. Donde a correspondência com o quadrado semiótico:
A descrição da loucura, a sanção do "longe", a reificação das duas loucas despachadas para longe, para sempre – Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais – é uma leitura de superfície, posto que a marca da loucura toma conta de Sorôco e de todo o povo do lugarejo; uma sanção pelo avesso, que a análise mais profunda nos permite desvelar.
A sintaxe de nível fundamental nos descreve o funcionamento desse quadrado em duas operações ou movimentos antitéticos:
a. Afirma a loucura, nega a loucura, afirma a normalidade: com relação às loucas.
b. Afirma a normalidade, nega a normalidade, afirma a loucura: com relação a Sorôco e ao povo do vilarejo.
A estrutura elementar em vaivém nos permite concluir que o /louco/ tem traços de /normal/ e, vice-versa, que o /normal/ tem momentos e traços de /louco/, não fosse um terceiro movimento, que inclui todas as pessoas do lugar na mesma operação de Sorôco. Todos a acompanhar aquele canto sem razão ... ninguém deixasse de cantar. E a "sensatez", que todos buscavam, deixa-se cair as máscaras: nem ninguém entendia o que se fizesse! É a loucura de todos? Ironia: nega-se na enunciação o que se afirma no enunciado, todos tão /loucos/ como é próprio dos humanos, logo tão /normais/ – na normalidade possível dos seres relativos.
O que fica como conclusão é outro quadro semiótico:
Portanto: /loucura/ faz parte da /vida/ e não da /morte/, em que pesem as diferenças, semas variáveis do mesmo semema /vida/.
O caminho da /morte/ não é a marca da /loucura/, mas aquele que, passando pela /não-solidariedade/, conduz à /morte da solidão/ ou "sozinhidão", neologismo roseano. Em "Sorôco, sua mãe, sua filha", com a "chirimia" da cantiga, ainda que ecoe "um quê de loucura no ar", dá-se o acorçôo do canto que, estabelecendo elos humanos de participação, garante o apoio da "terceira perna" que é o sustentáculo da vida humana.
A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula o fazer do homem que transforma o mundo. Para entender a organização narrativa de um texto, é preciso, portanto, descrever o espetáculo, determinar seus participantes e o papel que representam na historiazinha simulada.(Barros, p. 16)
Com isso, podemos destacar alguns elementos da análise de nível narrativo, que nos permite assistir ao “espetáculo” montado pelo enunciador-narrador que, já o sabemos, partiu de um nível mais profundo, duma sintaxe e duma semântica de base, para a narrativa complexa, em que uma série de enunciados de fazer e de ser (de estado) estão organizados hierarquicamente (Fiorin, p. 22)
O espetáculo que a sintaxe narrativa vai nos apresentar, com a ajuda das modalidades veredictórias da semântica narrativa, trata-se de um jogo de aparências que se desvelam, um jogo de máscaras que caem na prática do acontecer das coisas que se tecem e entretecem, apesar das aparências em contrário e das ideologias que as sustentam.
Na fase da sanção, a narrativa pode pôr em ação um jogo de máscaras: segredos que devem ser desvelados, mentiras que precisam ser reveladas, etc, alerta Fiorin (p.24). É o que se verifica com a surpreendente sanção negativa dos "heróis": tanto o sujeito de estado quanto o sujeito do fazer passam do estado de "normais" para o estado de "loucos", dentro do seu próprio programa. Em vez de solucionar o problema da loucura, o afastamento das duas loucas faz com que a loucura se aposse de todos. Há um anti-programa, um anti-herói que surge inequívoco, arrasador. Um anti-destinador impõe-se implacável, revolucionando o mundo dos valores, transformando o valor /loucura/ aplicado às "duas" em apenas uma das diversidades desta vida, que tanto o sujeito de estado quanto o sujeito do fazer podem viver na prática do acontecer das coisas, o que tanto porfiavam em saber. Quando o narrador, em debreagem enunciativa de primeira pessoa, identificando-se com o sujeito do fazer ("a gente"), conclui que "Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação", refere-se a essa transformação operada por um Anti-Sujeito, dentro de um novo Programa, que nega a oposição fundamental /Louco X Normal/ e estabelece uma nova axiologia /Solidário X Só/, ligada às categorias /Vida X Morte/.
Destinador-julgador, o Anti-Sujeito faz a "sanção cognitiva" do sujeito, ou interpretação, e a "sanção pragmática" ou retribuição (Barros, p. 31). Pela interpretação, faz o reconhecimento do sujeito, reconhecendo os estados como falsos ou verdadeiros, secretos ou mentirosos. A verdade da /Loucura/ atribuída às duas (é + parece) desvela-se como mentira (parece + não é). Idem com relação à verdade da /Normalidade/ atribuída a Sorôco e às pessoas do lugar. A partir da manifestação p/-p (parecer / não-parecer) vai inferir-se a imanência de s/-s (ser / não-ser). É ou não-é (louco / normal) é inferido pelo sujeito a partir das aparências parece ou não-parece, o que o Anti-Sujeito nega, uma vez que as marcas externas, os gestos, a cantiga arrítmica, o estranho pertencem a todos, apenas em momentos diferentes.
Quanto à sintaxe discursiva, esta se ocupa com as "projeções da enunciação no enunciado" e com as "relações entre o enunciador e o enunciatário" (Cfr Fiorin, p. 39ss), uma vez que o ato de produção do discurso, a enunciação "deixa suas marcas no discurso que constrói" e busca persuadir o enunciatário, realizando um fazer persuasivo que o leve a um fazer interpretativo correspondente.
Na descrição dos níveis anteriores, foram feitas alusões a esses mecanismos discursivos, uma vez que a separação em níveis é apenas uma distinção metodológica para forçar a análise a uma profundidade crescente.
No ato de produção do texto, o nível profundo ou fundamental precede o narrativo e culmina com o discursivo. Na análise, o nível superficial vem em primeiro lugar, observam-se primeiro os efeitos de sentido, para se chegar à significação profunda. Assim, preferimos, no presente trabalho, partir do fundamental para o superficial, o que, em obrigando a contínuas idas e vindas, tencionava deixar mais claro o percurso gerativo do sentido.
Se as coisas começam deveras é por detrás, isto é, se a verdadeira significação está em níveis cada vez mais profundos, o que tentamos desvelar na análise das estruturas sêmio-narrativas e discursivas do conto "Sorôco, sua mãe, sua filha" de João Guimarães Rosa, o mérito cabe aos avanços da teoria greimasiana. Espero com isso ter contribuído na construção da "gramática do conteúdo", que nos permitirá a caminhada cada vez mais segura pelos ínvios labirintos do significado, revestido e mascarado pelo discurso do enunciador que se esconde, mas deixa suas marcas.
Há um mundo mítico a se fazer história neste conto roseano, "há um quê de loucura no ar" a se impor dissonante e desconexo. Mas há também a ideologia dum novo mundo mítico que nos fará vencer essas barreiras intransponíveis e somar nossa "parole" à cantiga de todos. Em níveis crescentes de profundidade, podem ler-se melhor e a fundo obras tão bem estruturadas esteticamente.
Bibliografia
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1990.
CHABROL, Claude. Semiótica Narrativa e Textual. Trad. Leyla P. Moisés et al. São Paulo: Cultrix, 1977.
COURTÈS, J. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra: Almedina, 1979.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1989.
GREIMAS, Julien Algirdas. Maupassant: La Sémiotique du Texte – Exercices Pratiques. Paris: Éditions du Seuil, 1976.
LOPES, Edward. Fundamentos de Lingüística Contemporânea. São Paulo: Cultrix, s/d.
RECTOR, Monica. Para ler Greimas. Rio de Janeiro: francisco Alves, 1979.
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
UFRN – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CCHLA-DEPARTAMENTO DE LETRAS
DISCIPLINA: LITERATURA BRASILEIRA V
PROFESSORA: MARIA FRANCINETE DE OLIVEIRA
ALUNOS: ROSA THAIZA SOARES
ANA PATRICIA BARBOSA DA SILVA
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